Para entender os efeitos colaterais da crise, sobretudo na esfera profissional, Universa conversou com algumas das principais executivas brasileiras. Mulheres que, na última década, vivenciaram as principais mudanças nas perspectivas femininas no mercado de trabalho e que têm nas mãos novos e maiores desafios.
Mulheres, agentes da mudança
“Vivemos a abertura de um espaço de protagonismo talvez inédito para nós, mulheres”, diz a socióloga Maria Arminda do Nascimento Arruda, diretora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenadora do Escritório USP Mulheres, que desenvolve ações voltadas para a igualdade de gênero na universidade. Segundo ela, mulheres sempre foram agentes de mudança no Brasil e no mundo.
“Não é algo inato, mas a consequência de terem sido submetidas, nos séculos passados, a papéis não previstos. O exemplo clássico é o das grandes guerras, quando, além de cuidar da família e lidar com a ausência do parceiro, elas precisaram assumir postos de trabalho, sendo lançadas a desafios que desconheciam”, explica a professora.
Essa construção social explica o porquê de mulheres geralmente serem mais abertas a mudanças e dispostas a inovar, como se essas fossem condições de sobrevivência. Para a socióloga, a soma desses comportamentos e de características da personalidade feminina vão ditar os dilemas profissionais que ficam para trás, sobretudo no pós-pandemia, e direcionar a evolução das carreiras das mulheres nos próximos anos.
Carreira x Maternidade
Talvez os questionamentos mais clássicos —que envolvem a escolha de ter filhos ou de pensar no que é melhor para a família e que muitas vezes afetam a ascensão feminina no trabalho— persistirão. “Não é mimimi. Esse ainda é um dilema presente, um aspecto que vem melhorando, mas não se resolveu”, diz Andrea Alvares, vice-presidente de marketing e inovação da Natura e mãe de três.
Para ela, esse impasse causa claros danos econômicos para a sociedade, já que inviabiliza que mulheres atinjam o seu potencial ao mesmo tempo em que impede os homens de aproveitarem e assumirem a paternidade de forma mais profunda.
Paula Bellizia, vice-presidente da Microsoft para a América Latina e mãe de dois, concorda que a tensão tende a continuar. “Embora eu esteja convencida de que mulheres não deveriam ter de escolher entre um papel e outro, essa continuará sendo uma questão quando elas avaliarem as possibilidades de carreira.”
Os caminhos, apontam todas as executivas ouvidas, estão na continuidade de políticas de apoio tanto para mulheres quanto para homens, como medidas para apoiar a volta da licença-maternidade, concessão de licençapaternidade e, principalmente, compreensão da realidade de quem tem filhos – o que significaria uma sensibilidade maior das lideranças.
Equidade no trabalho, desigualdade em casa
Com o trabalho remoto como única alternativa na pandemia, a divisão de tarefas domésticas pode tomar um rumo sem volta. “Acredito que estamos num momento muito revelador”, diz Patricia Audi, vice-presidente de marketing, sustentabilidade e relações institucionais do Santander. “O home-office nos traz uma compreensão e valorização do trabalho doméstico, seja pelo que antes era feito por uma terceira pessoa, seja pela divisão mais igualitária que se fez obrigatória entre cônjuges.”
A carga mental, os afazeres domésticos e o cuidar são considerados um trabalho invisível e essencialmente feminino, outro reflexo de construções históricas longínquas, em que, nas divisões de poder, o homem exercia o papel de provedor enquanto a administração da casa ficava por conta da mulher.
Com homens vivenciando mais a realidade da casa, é possível então que aqueles em cargos de liderança avancem nas políticas de equidade para apoiar profissionais mulheres? “Não creio que esse choque de realidade vá reverberar em investimentos em equidade por sensibilidade dos homens. Me parece que este é um esforço que depende mais da confiança da mulher em suas qualidades”, afirma Ana Theresa Borsari, CEO do grupo automotivo PSA no Brasil.
Na opinião de Duda Kertesz, presidente de negócios de consumo da Johnson & Johnson nos Estados Unidos, a jornada pela igualdade ainda será longa. “Houve progresso e acredito que a pandemia vá nos conduzir a um caminho de mudanças. Mas desde que estejamos abertos e comprometidos para que isso seja duradouro.”
Chega de terninho
“Sou suspeita para falar. Sei que não passo despercebida por conta da maneira informal com que me relaciono ou pelo meu estilo”, conta Juliana Azevedo, CEO da P&G no Brasil, onde começou como estagiária até se tornar a primeira mulher a assumir a presidência da companhia no país. “Por isso, defendo que, com confiança, não importa se você usa terninho ou vestido.”
Muitas empresas já aboliram o chamado “dress code”, normas de etiqueta corporativa que orientavam sobre vestimentas adequadas. Até a virada do século 21, terno para homens e saltos e tailleurs para mulheres eram quase obrigatórios. Foi o novo estilo proposto por empresas de tecnologia, como o Google, que colocou na berlinda códigos mais rígidos e masculinos sobre o que usar no trabalho.
“Acredito que ser autêntico demonstra confiança não apenas em quem você é como também nas decisões que você toma”, afirma Duda Kertesz.
Jornada exível, uma necessidade?
Além de divisões mais igualitárias esperadas na rotina doméstica, o trabalho remoto aparece como um aliado adicional para o crescimento feminino na carreira. A possibilidade de uma rotina de trabalho flexível minimiza ansiedades e culpas e proporciona um estímulo adicional às profissionais que conseguem se organizar assim.
E há quem esteja certo de que essa condição pesará nas decisões profissionais futuras das mulheres. “Muitas estarão diante da perspectiva de se dedicar ao trabalho, contribuindo para a sociedade, ao mesmo tempo em que se realizam na maternidade, vivendo um equilíbrio maior de papéis”, afirma Andrea Alvares.
“Confesso que era abertamente contra trabalho remoto”, diz Ana Theresa Borsari, que em 48 horas precisou colocar todo o time em home-office. Foi surpreendida positivamente pela percepção de que, sem o peso do controle, muitos trabalharam mais e melhor. “A ruptura que aconteceu não tem volta e acredito que tenhamos hoje, mesmo num cenário de pandemia, mais propósito e engajamento.”
Menos competição, mais network
“Mulheres precisam ter uma pauta efetiva de compromisso umas com as outras”, afirma a professora Maria Arminda. Voltando às origens históricas de constituição de poder, ela credita o mito da competitividade feminina à necessidade de se disputar espaços quando eles ainda não estavam abertos a elas. “Eram tantas situações adversas que elas nem podiam focar na solidariedade com as outras. Precisavam competir, antes de tudo, em pé de igualdade com os homens.”
Para esse tipo de comportamento não há mais espaço, opinam, unanimemente, as executivas ouvidas por Universa. “Firmar parceria entre nós é a coisa mais importante que podemos fazer. Quanto mais confiança estimulamos em nossas funcionárias e colegas para seguir paixões e objetivos, maior será o resultado e mais perto estará a equidade”, diz Duda Kertesz.
“Hoje mulheres criam mais pontes e o fazem de um lugar muito mais genuíno”, afirma Andrea Alvares. “Aprendemos verdadeiramente com outras mulheres e essas amizades não ficam restritas a uma rede de relacionamentos.”
Inclusão, um desafio
A ideia de que uma situação tão adversa tem aberto perspectivas inéditas para o protagonismo feminino também traz à tona o lado negativo dessas mudanças: o retrocesso que a pandemia já está causando em questões de inclusão e diversidade. Entrar, se manter e ascender no mercado de trabalho fica ainda mais difícil para as mulheres negras nesse cenário. E este será o grande dilema futuro para todas as mulheres.
Em abril, um relatório produzido pelo Instituto Identidades do Brasil (ID_BR) sobre os impactos da Covid-19 na saúde financeira de mulheres negras mostrou que, entre as profissionais contratadas por empresas nacionais e multinacionais, 76,5% tinham medo de perder o emprego. A preocupação se sobrepunha às questões de saúde: somente 13,2% temiam ficar doentes. E 10,3% se preocupavam com a possibilidade de que ações de diversidade e inclusão fossem descontinuadas.
“Já estamos vivendo a queda de empregos entre mulheres negras e se faz necessário um evento conjunto de agentes da sociedade para evitar ou lidar com esse retrocesso”, aponta Andrea Alvares.
Fundadora do banco digital D'Black Bank e do Movimento Black Money, Nina Silva atenta para um aspecto anterior à pandemia. “As políticas de diversidade são pensadas, via de regra, por pessoas brancas, considerando, antes da raça, o gênero.” E, assim, esses profissionais, ainda que com boa vontade, se baseiam nas estruturas sociais que conhecem, desconsiderando diferenças fundamentais da realidade das mulheres negras que almejam o mercado de trabalho, com chances efetivas de se desenvolver na carreira.
Nina lembra que enquanto a mulher branca lutava por direitos como os de trabalhar e votar, a mulher negra ocupava espaços de subemprego. “Por isso não conseguimos competir igualmente com mulheres brancas. Trazemos um peso social diferente e muito maior”, explica ela, que, junto com a irmã mais velha, inaugurou a geração de mulheres com diplomas de ensino superior em sua família.
Para a professora Maria Arminda, o futuro não está posto e não há garantia de um mundo mais igualitário no pós-pandemia. “Mas já é fato que precisaremos de políticas focalizadas por parte também das empresas. Ou esse sistema, que está puxando ainda mais para trás as mulheres negras, pode se cristalizar, sem que seja real e inclusivo um legado das lideranças femininas para todas.”